Assim nasce uma favela

16/04/2015 - O Globo


Diz Osvaldo Chagas que há 19 anos encontrou um terreno para criar seus cavalos e ter condições de trabalhar como carroceiro. A terra fica na Estrada Comandante Guaranys 538, atrás da Cidade de Deus. O problema é que não é dele. Mesmo assim, conta, levantou barraco, fez aterros, plantou uma pequena roça e foi vivendo. Há cerca de quatro anos, seu Osvaldo recebeu uma vizinha. Laís Conceição morava com o marido, Marcos Júnior, numa comunidade da Cidade de Deus. Afirma que pagava R$ 480 de aluguel com o único salário-mínimo que a família tinha como renda.

— Eu vi que tinha uma casa aqui e me mudei — explica.

Depois de Laís, há cerca de dois anos, vieram Ondina Oliveira, José Nilton e muitos outros que repetem a mesma história: "Ninguém aqui tinha casa. Todos moravam de aluguel". É assim, e geralmente com essa história, que nasce uma favela. E com ela uma infinidade de problemas.

Para os moradores, a principal dificuldade é a condição precária na qual vivem. Habitam barracos feitos com madeira achada em construções, não têm saneamento básico nem instalações elétricas regulares. Para o poder público, fica o trabalho de proteger o terreno e promover a retirada ou, caso a ocupação tenha êxito, regularizar a situação. Para os vizinhos, resta o incômdo de conviver com o desconhecido: a Associação Comercial e Industrial de Jacarepaguá (Acija) está se mobilizando contra as novas comunidades, temendo que, a reboque delas, venha o aumento da violência. — A segurança nessa região é um fator que nos preocupa. Estamos fazendo parceria com o poder público e em contato direto com os batalhões e delegacias, para elaborarmos planos contra essas invasões — diz Aluízio Cunha, dretor-executivo da entidade.

Há também compaixão.

— Sinto tristeza pela condição dessas pessoas — diz a professora Alice Giannini, moradora da Freguesia.

O GLOBO-Barra teve acesso a dois embriões de favelas na Comandante Guaranys, que juntas contam 60 moradias. Na Vila da Amizade, o nome foi definido enquanto a reportagem estava no local. Não sem uma discussão entre católicos, que queriam batizá-la de Vila São Jorge, e evangélicos, que não queriam homenagear um santo. Prevaleceu um nome neutro.

Na Vila da Amizade, os moradores construíram uma "rua" principal, "asfaltada" com uma fina camada de concreto. Uma fossa séptica, que recebe o esgoto dos barracos, é tapada com um disco de ferro igual aos usados em outras ruas do Rio.

Os barracos são pequenos. A maioria tem uma cozinha, que funciona como sala; um quarto, que também funciona como sala; e um banheiro, que desemboca no esgoto improvisado.

Todos têm energia elétrica, puxada ilegalmente dos postes públicos, o que garante aos moradores um pouco de conforto, como TV por assinatura, telefone e internet. É na conta da TV que eles se apegam para tentar comprovar a posse do terreno. Quem não tem o papel da operadora ( a conta da Claro chega com endereço) vai ao cartório e assina documento de fé pública declarando a residência, como fez Lais.

Perguntada sobre o fato de haver assinaturas em área ilegal, a Claro diz, em nota, que exige de todos os clientes documentos pessoais e comprovante de residência "para posterior instalação do serviço contratado". Muitos moradores são instruídos. José Nilton, que acompanhou a equipe do GLOBO-Barra o tempo todo, acha que a reportagem pode ajudá- los a provar que eles residem lá, e pede apoio.

— Eles acham que a maioria dos moradores está aqui para ganhar outra casa, mas todos moravam de aluguel — garante. — Queremos que nos tragam uma solução. Que regularizem os terrenos para melhorarmos nossa condição ou que nos deem uma casa em outro lugar.

Ondina Oliveira não sabe a quem pertence o terreno, mas acha que é da prefeitura. E tem a seguinte convicção:

— Se é do povo, é nosso também.

Ao lado da Vila da Amizade fica a Vila da Conquista, que tem infraestrutura pior. Principalmente depois do dia 1º de abril, quando agentes da Guarda Municipal e da Polícia Militar derrubaram barracos amparados por uma ação que garantia a reintegração de posse ao município.

Ainda abatido, Benedito dos Santos batia martelo para reconstruir a casa destruída na ocasião e trazer de volta a mulher e o filho, que estavam com parentes:

— Parece mentira, mas vieram aqui no dia 1º de abril e derrubaram tudo.

O bota-abaixo é novidade para Benedito, mas não para Osvaldo, o primeiro morador. Ele já passou por três demolições e uma tentativa, a do dia 1º. Só não precisou refazer a casa novamente porque, com apoio da Defensoria Pública, conseguiu uma liminar para se manter no terreno.

— Se eles derrubarem, eu construo de novo — avisa.

O subprefeito da Barra e de Jacarepaguá, Alex Costa, não acredita na história dos moradores. Ele confirma que o terreno é da prefeitura e que há uma ação de despejo contra os ocupantes, motivada por uma denúncia anônima formalizada no fim de março:

— Todo mundo pode contar uma história, mas não tem sentido as pessoas invadirem uma área pública e a gente ficar assistindo a isso.

Costa garante ter informações de que os moradores residem em outros pontos da cidade, e os classificou como invasores profissionais:

— Eles têm moradia e tentam aquela velha história da grilagem. Se colar, colou. Isso é malandragem, e malandragem a gente vai tratar dessa forma. Ninguém mora em um ambiente insalubre como o que vimos ao chegamos para fazer a reintegração.

O subprefeito diz que não há plano de transferir os moradores para outro lugar:

— Se em todo lugar público que invadirem e marcarem as terras fizermos isso, vamos estimular essa prática.

A advogada da Câmara Comunitária de Jacarepaguá, Andressa Gama, explica que costuma haver três tipos de invasões no Rio:

— Tem os grileiros, que ocupam a terra para comercializar terrenos; o invasor que busca uma moradia tentando comprovar o usucapião; e a invasão em massa, geralmente feita por pessoas inscritas em programas sociais como forma de pressionar o Estado.

Para Christiane Romeo, cientista política e professora do Ibmec, o problema é histórico, deve-se à falta de planejamento urbano e se agravou nos últimos tempos:

— É uma questão de Estado. Com toda essa crise, as pessoas vão buscar alternativas para não ficar na rua.