O arquiteto que sonhou com uma cidade sem favelas

04/05/2017 - O Globo

Caio Barretto Briso

Arquiteto da Cidade Alta, área dos recentes confrontos entre bandidos, Giuseppe Badolato diz que seu projeto se desvirtuou, e que não imaginava a favelização do lugar. Caem lágrimas dos olhos azuis do arquiteto italiano Giuseppe Badolato quando ele pensa na Cidade Alta, no bairro de Cordovil, palco do último capítulo da guerra entre traficantes no Rio. Ele se emociona porque 50 dos seus 83 anos foram dedicados à habitação popular, e por ter sonhado com uma realidade diferente quando projetou, com uma equipe de oito arquitetos, o condomínio de 2.597 apartamentos espalhados por 64 edifícios de cinco andares, desde o ano passado no centro da disputa por território entre duas facções rivais.

- Éramos jovens, projetamos esses lugares com objetivo nobre, a gente vibrava. Com o tempo, o projeto se desvirtuou, os núcleos foram invadidos por pessoas irregulares e dominados por politicagem. O resultado é o que vemos hoje - diz Giuseppe, na casa onde vive com sua mulher, no Grajaú. - A Cidade Alta foi um marco por ficar a menos de 20 km do Centro, com estação de trem, escolas e centro comercial, e por ser um projeto vertical de habitação de interesse social. Cada prédio tinha um jardim em volta, as mulheres cuidavam, plantavam flores. Ontem (terça-feira), vi na televisão que os espaços de lazer foram ocupados por barracos. É triste.

O italiano, que começou a trabalhar no Brasil como alfaiate, antes de se formar arquiteto, foi contratado pela Companhia de Habitação (Cohab), fundada em 1963 pelo então governador, Carlos Lacerda. Pouco a pouco, chegou ao cargo de diretor da empresa, que mudou de nome e passou a se chamar Companhia Estadual de Habitação (Cehab) após a fusão dos estados do Rio e da Guanabara, em 1975.

A Cidade Alta surgiu depois da Cidade de Deus, também desenhada por Giuseppe. Foi inaugurada com festa no dia 28 de março de 1969. Embora ficasse bem mais perto do Centro do que outros conjuntos habitacionais feitos naquela década, como por exemplo o da Vila Kennedy - localizada no fim da Avenida Brasil, a quase 60km do Centro -, a mudança para o conjunto sofreu resistência dos moradores da favela Praia do Pinto, que tinha 18 mil habitantes e cresceu ao longo de quatro décadas à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas. Para convencer os futuros moradores, o governo levou um grupo de 300 deles para conhecer as instalações. Segundo Giuseppe, "eles voltaram encantados e correram para fazer o cadastro, eram 200 inscritos por dia". O encantamento se explica: a maioria jamais tinha morado em edifício. Menos ainda com jardins, praças e quadras de esportes ao redor.

- Tinha água, luz, esgoto, ônibus, tudo. Havia três escolas para as crianças, e os prédios eram todos coloridos - lembra o arquiteto.

MORADORES VIERAM DE FAVELA NA LAGOA

Os apartamentos foram financiados pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), que parcelava o pagamento em 20 anos. O índice de adimplência era superior a 80%. Quase todas as unidades, de um e dois quartos, foram compradas por moradores da Praia do Pinto, removidos definitivamente após um incêndio, nunca esclarecido, fazer arder a favela. Feita por 5.920 operários, a remoção durou 74 dias - em um único dia de trabalho, eles derrubaram 710 barracos de madeira, ao ritmo impressionante de um por minuto. Em um antigo relatório da Cohab, guardado por Giuseppe, a inauguração de Cidade Alta é definida como "o maior êxito da companhia no ano de 1969".

Construído em terreno plano em Cordovil, na Zona Norte, o conjunto habitacional fica no entrocamento da rodovia Washington Luís com a Avenida Brasil. Pela localização estratégica, a comunidade passou a ser alvo constante de duas facções de traficantes de drogas e roubos de cargas. Segundo a TV Globo, 130 traficantes invadiram a Cidade Alta na madrugada de terça-feira tentando recuperar a área que eles controlavam antes da invasão de rivais. O confronto entre eles durou das 2h às 7h, quando a Polícia Militar interveio, prendendo mais de 40 criminosos e recolhendo 32 fuzis. Uma das facções ordenou que a população ateasse fogo em ônibus: foram nove incendiados, além de dois caminhões. O trânsito da cidade parou enquanto o medo se espalhava.

Segundo Giuseppe, um dos fatores que não deram certo na criação de condomínios como o Cidade Alta, feitos numa época em que se pretendia erradicar as favelas de uma vez por todas, é o fato de o conceito de "autogestão" não ter sido entendido pelos moradores.

- É como se eles não se sentissem donos do lugar. Sempre que tinha algum problema chamavam a Cohab. Não entendiam que a responsabilidade pela manutenção dos prédios era deles - afirma o arquiteto. - No início, todos gostavam de morar lá, era uma novidade. Depois, começou a mudar, tinha gente que não se acostumava a viver em prédio, com regras e obrigações comunitárias. Sempre fui a favor da remoção quando era cabível. O que não pode é abandonar as pessoas no novo local, e a gente via isso acontecer. Aí, aparecia um vereador, depois outro, fazendo promessas. Até hoje é assim - conta Giuseppe.

No mesmo ano em que foi inaugurado o condomínio da Cidade Alta, o governador Negrão de Lima removeu favelas inteiras, como Marquês de São Vicente (onde fica o Planetário), Morro da Guarda, Piraquê, Parque da Alegria, Ilha das Dragas e Pedra do Baiano. Previa-se a remoção da Rocinha, com 80 mil moradores à época, e de outras comunidades como Cantagalo, Babilônia e Dona Marta. Com o dinheiro arrecadado após o leilão das terras da Praia do Pinto, o governo conseguiu mais verba para financiar novos conjuntos habitacionais e, ao mesmo tempo, atendeu à principal reivindicação dos moradores da Lagoa, Leblon e Ipanema. No lugar da favela, nasceu o condomínio Selva de Pedra.

- Foi das maiores pressões que o governo sofreu da população, principalmente desses bairros, que queria acabar com as favelas - recorda-se Giuseppe. - Morei dez anos em uma garagem com minha família. Sei o que é passar dificuldade. Como arquiteto, eu via uma oportunidade única do ponto de vista urbanístico, além da chance de elevar o nível social de pessoas que viviam em condições subumanas. Era o que sonhávamos.