No Centro do Rio, 600 construções estão ociosas

16/07/17 - O Globo 

Selma Schmidt 

RIO — A passagem do VLT, um bonde moderno novinho em folha, pela esquina das ruas da Constituição e República do Líbano, contrasta e faz realçar na paisagem o esqueleto do imóvel onde funcionou, por mais de três décadas, o Rei das Válvulas, uma das maiores lojas de componentes eletrônicos e ferramentas do Brasil, que sofreu um incêndio em 2012. Há sinais de que houve uma tentativa de reerguer a estrutura, numa obra interrompida na primeira laje. E, pelas frestas das tábuas colocadas para inibir invasões, se vê muito lixo, além de tijolos estocados. O lugar, segundo vizinhos, estaria sendo usado como depósito. Virou mais uma entre as tantas construções fechadas, subaproveitadas e abandonadas na cidade. Num levantamento que ainda está sendo concluído, a prefeitura já identificou cerca de 600 delas, entre 4.400 prédios, casas e vilas existentes na área de negócios do Centro. Algumas são parte da história carioca. Outras, até tombadas pelo patrimônio.

No polígono estudado desde novembro do ano passado — que tem como alguns dos limites a Praça Quinze, o Outeiro da Glória, a Rua Frei Caneca e a Avenida Presidente Vargas, do Campo de Santana à Candelária —, mais de 85% das construções sem uso são privadas. Para dar um novo destino a elas, arquitetos e urbanistas apostam em soluções, como o IPTU progressivo em determinados trechos da cidade. Mas há também quem defenda a redução e até a isenção de impostos para estimular proprietários e empreendedores a reerguerem edificações, muitas vezes em ruínas.

Basta dar um passeio pela região para constatar o tamanho do problema. Largado à própria sorte, um pequeno prédio azul na Rua Riachuelo, entre os números 270 e 276, foi invadido há mais de uma década. O térreo virou depósito de carrocinhas de pipoca e, da fachada, às vezes despencam rebocos. Mais adiante, na esquina da Rua dos Inválidos, sobraram as ruínas da entrada do grande solar do século XVIII, pertencente ao Visconde de São Lourenço, e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1938. A área interna do casarão desabou no início dos anos 1990. Os vãos de portas e janelas foram cobertos grosseiramente com tijolos e cimento para cercar o estacionamento 24 horas, improvisado há 20 anos num terreno de mil metros quadrados. Para conter os pedaços que desgrudam do que restou do palacete, a estrutura foi envelopada por andaimes e telas.

— A dona do estacionamento é uma portuguesa que não permite que eu passe o contato. O que posso dizer é que ela não pretende arrumar a fachada. São muitas exigências, e é muito caro — conta o supervisor Reinaldo Mendes.

CONTRASTES NO BOULEVARD

Chegando à Rua do Mercado, incluída no corredor cultural do município, dois imóveis chamam atenção. Um deles, bem conservado — com térreo, dois andares e com varandinha —, abrigou o extinto Papa Tudo (títulos de capitalização administrados pela Interunion). Ele se estende pela Rua do Rosário e ainda pega um trecho da Mercadores.

— Esse prédio está fechado há nove anos — conta Emanuel Queiroz, zelador de um edifício na vizinhança.

Outro prédio da Rua do Mercado, esquina com a Ouvidor, também está fechado. Da única janela aberta se vê um tapume. É um sinal de reforma interna. A Irmandade da Santa Cruz dos Militares, dona do imóvel, diz que o edifício ficou fechado por dois anos, mas agora está alugado. Por e-mail, afirma que “em breve” no local “será exercida atividade gastronômica”. A irmandade informa ainda que possui 400 imóveis, dos quais 5% estão vagos.

Mais adiante, no badalado Boulevard Olímpico, em frente ao Armazém 2 e entre a Superintendência Regional do Ministério da Agricultura e uma unidade do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), o mau estado de conservação de seis prédios, um ao lado do outro, com fachadas descascando e janelas quebradas, destoam no ambiente revitalizado. Em dois deles, placas indicam que os espaços podem ser alugados para eventos: o azul tem três mil metros quadrados, mil por pavimento; e o amarelo, que está sem teto, tem dois mil metros quadrados distribuídos por térreo, jirau e laje.

— Estamos nos preparando para alugar. Na época do viaduto, era tudo degradado. Ninguém queria — conta Alexandre Oliveira, gerente de negócios da Kreimer Engenharia, proprietária dos dois prédios, justificando o atual estado de conservação dos edifícios. — O IPTU é caro, e a turma vai fazendo aos pouquinhos.

UTILIZAÇÃO COMPULSÓRIA

O arquiteto e urbanista Washington Fajardo, que presidiu o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, lembra que a Constituição Federal, de 1988, estabeleceu que a propriedade privada no Brasil precisa ter uso. Já o Estatuto da Cidade, de 2001, criou mecanismos para que esse princípio seja aplicado, sendo um deles o da utilização compulsória. Com o Plano Diretor do município, de 2011, foram estabelecidas as áreas onde esse tipo de situação se encaixa.

— A utilização compulsória é um estímulo para se recuperar áreas e destravar imóveis. É um mecanismo bom para o mercado imobiliário, para a política habitacional e para o patrimônio cultural. Não é um mecanismo fiscal, mas urbanístico, e também produz receita por causa da cobrança — argumenta Fajardo. — Outra vantagem indireta é fazer com que a prefeitura passe a ter a documentação atualizada desses imóveis. Os ociosos são como pessoas sem documentos, que não têm certidão de nascimento, RG nem CPF. São imóveis indigentes, mortos-vivos.

O Estatuto da Cidade fixa as regras para essa cobrança. Após a notificação, o proprietário tem um ano para começar a dar uso ao imóvel. Se não cumprir a exigência, o IPTU vai aumentando progressivamente e, após cinco anos, se continuar fechado, pode ser desapropriado, sendo o pagamento feito em títulos da dívida municipal.

Mas, para aplicar a utilização compulsória, a prefeitura tem que aprovar uma lei regulamentando esse instrumento. E, por enquanto, a Secretaria municipal de Fazenda informa que projetos de lei, como o do IPTU progressivo, estão sendo estudados, “a fim de propor mudanças cabíveis e necessárias”.

Entre os defensores da medida, o arquiteto e urbanista Carlos Fernando de Andrade destaca que a desapropriação e o leilão, previstos no instrumento, poderiam evitar que prédios históricos herdados se transformassem em ruínas:

— O IPTU progressivo seria ainda interessante no caso de imóveis fechados para especulação, esperando valorização.

Para o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, Jerônimo de Moraes, esse mecanismo é viável. Mas ele diz que deve ser analisado caso a caso:

— É obrigação do dono dar uso a seu imóvel. Além disso, prédios malconservados trazem prejuízos para a cidade. Só que a prefeitura deve cobrar um IPTU pesado de quem não quer recuperar e reduzir impostos de proprietários que pretendem reformar seus imóveis.

Presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), Claudio Hermolin bate na tecla de que a solução para recuperar construções privadas passa por incentivos:

— É preciso dar descontos e até isenções de impostos por um período, durante e após a obra, para que o mercado se interesse em realizar algumas delas.

O presidente do Sindicato da Habitação do Rio (Secovi Rio), Leonardo Schneider, concorda:

— Muitas famílias que recebem imóveis antigos de herança não têm condições de recuperá-los. E os empreendedores não se interessam em comprá-los.

Arquiteto e urbanista, Luiz Fernando Janot ressalta que aplicar o IPTU progressivo neste momento de crise é maldade:

— A economia está completamente travada, sem vigor.

PROJETO ESTADUAL PARADO

A arquiteta Andréa Redondo, responsável pelo blog Urbe CaRioca, destaca que, na atual situação econômica, o melhor seria os governos usarem os recursos gastos na construção de vários conjuntos do programa Minha Casa Minha Vida, inadequados do ponto de vista urbanístico, segundo ela, para comprar os imóveis ociosos e inseri-los em projetos habitacionais após reformas.

Na Superintendência de Patrimônio Imobiliário do município, constam registros de cerca de cinco mil imóveis da prefeitura, 8% sem ocupação. No primeiro quadrimestre deste ano, foram arrecadados R$ 101 milhões com os aluguéis desses bens.

Há seis anos, o estado anunciou um plano de recuperação de seus imóveis para transformá-los em conjuntos residenciais. O projeto parece não decolar. Na Avenida Modelo, primeira experiência de moradia popular, na Rua Regente Feijó, no Centro, por exemplo, a ação não foi além do escoramento da fachada que restou de um sobrado de 1888. Uma trepadeira reforça a estrutura do arco de entrada da vila de oito casas, em péssimo estado de conservação. Os moradores contam que ocupam o local há décadas, sem pagar aluguel. Os “gatos” garantem a água e a luz. A Secretaria estadual de Obras diz que não apareceram interessados na licitação para a restauração, e um novo edital será lançado.

O presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio Magalhães, embora veja o IPTU progressivo como “bom instrumento”, prega a atuação efetiva da prefeitura em relação aos bens públicos, sobre os quais não incidem impostos:

— O mínimo que deveria fazer é dar destinação a seus imóveis. Deve ainda ter autoridade sobre os outros imóveis públicos. Os governos federal e estadual não podem ser latifundiários urbanos. A prefeitura tem que reivindicar um poder mais forte de atuação nesse sentido.